OUTUBRO TEM HALLOWEEN !
 PERTENCER
Clarice Lispector
 Um amigo meu, médico,  assegurou-me que desde o berço a criança sente o  ambiente, a criança  quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.  
Tenho  certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de  pertencer.  Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia  estar  sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça. 
Se  no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar   pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se   contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.   
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou  a  alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de  quanto  preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um  corpo e  uma alma. E preciso de mais do que isso. 
 Com o tempo,  sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não  sei mais  como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não  pertencer"  começou a me invadir como heras num muro. 
Se meu desejo mais  antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz  parte de clubes ou de  associações? Porque não é isso que eu chamo de  pertencer. O que eu  queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me  viesse de bom de  dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço.  Mesmo minhas  alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria  solitária pode se  tornar patética. É como ficar com um presente todo  embrulhado em papel  enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem  dizer: tome, é seu,  abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas  e, por uma espécie  de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente  embrulho com papel  de presente os meus sentimentos. 
 Pertencer não vem apenas de ser  fraca e precisar unir-se a algo ou a  alguém mais forte. Muitas vezes a  vontade intensa de pertencer vem em  mim de minha própria força - eu  quero pertencer para que minha força não  seja inútil e fortifique uma  pessoa ou uma coisa. 
Quase consigo me visualizar no berço, quase  consigo reproduzir em mim a  vaga e no entanto premente sensação de  precisar pertencer. Por motivos  que nem minha mãe nem meu pai podiam  controlar, eu nasci e fiquei  apenas: nascida. 
No entanto fui  preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito.  Minha mãe já  estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada,  acreditava-se  que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então  fui  deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha   mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão   determinada e eu falhei. 
 Como se contassem comigo nas trincheiras de uma   guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu   ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. 
Mas eu,  eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um   milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a   meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de   solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da   fuga que por vergonha não podia ser conhecido. 
A vida me fez de  vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a  medida do que eu  perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é  viver.  Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego  os  últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no   deserto mesmo que caminho!
 CORTINA DA SALA
 
 






 
 
Clarice Lispector é danada de boa em esmiuçar e depois descrever sentimentos. E lendo-a, é que a gente entende uma infinidade de sensações e sentimentos que se tem e não consegue identificá-los. É uma filósofa do humano, que sempre deixa escapar sua própria infelicidade.....Liliana
ResponderExcluirO que posso falar do meu nascimento?
ResponderExcluirSimplesmente não queria sair ... eu subia ....
Pode ser engraçado mas é verdadeiro.