Affonso Romano de Sant’Anna
Eu tinha lido que, lá na Índia, elefantes olhando o crepúsculo, às vezes, choram. Mas agora está aí esse filme “Camelos também choram”. Contudo, esse filme feito sobre uma comunidade de pastores de ovelhas e camelos, lá na Mongólia, mostra que os camelos choram, mas choram não diante da morte, mas em certa circunstância que faria chorar qualquer ser humano. E na plateia, eu vi, os não camelos também choravam.
Para nós, tão afastados da natureza, olhando a dureza do asfalto e a indiferença dos muros e vitrinas; para nós que perdemos o diálogo com plantas e animais, e, por consequência, conosco mesmos, testemunhar com aquela bela família de mongóis o nascimento de um filhote de camelo e sua relação com a mãe é uma forma de reencontrar a nossa própria e destroçada humanidade. É isto: eles vivem num deserto. Terra árida, pedregosa. Eles, dentro daquelas casas redondas de lona e madeira, que podem ser montadas e desmontadas. Lá fora, um vento permanente ou o assombro do silêncio e da escuridão. E as ovelhas e carneiros ali em torno, pontuando a paisagem e sendo a fonte de vida dos humanos.
Sucede, então, que a rotina é quebrada com o parto difícil de um camelinho. Por isto, a mãe camela o rejeita. O filho ali, branquinho, mal se sustentando sobre as pernas, querendo mamar e ela fugindo, dando patadas e indo acariciar outro filhote, enquanto o rejeitado geme e segue inutilmente a mãe na seca paisagem. A família mongol e vizinhos tentam forçar a mãe camela a alimentar o filho. Em vão. Só há uma solução, diz alguém da família, mandar chamar o músico.
Ao ouvir isto estremeci como se me preparasse para testemunhar um milagre. E o milagre começou musicalmente a acontecer. Dois meninos montam agilmente seus camelos e vão a uma vila próxima chamar o músico. É uma vila pobre, mas já com coisas da modernidade, motos, televisão, e, na escola de música, dentro daquele deserto, jovens tocam instrumentos e dançam, como se a arte brotasse lindamente das pedras. O professor de música, como se fosse um médico de aldeia chamado para uma emergência, viaja com seu instrumento de arco e cordas para tentar resolver a questão da rejeição materna.
Chega. E ali no descampado, primeiro coloca o instrumento com uma bela fita azul sobre o dorso da mãe camela. A família mongol assiste à cena. Um vento suave começa a tanger as cordas do instrumento. A natureza por si mesma harpeja sua harmônica sabedoria. A camela percebe. Todos os camelos percebem uma música reordenando suavemente os sentidos. Erguem a cabeça, aguçam os ouvidos, e esperam. A seguir, o músico retoma seu instrumento e começa a tocá-lo, enquanto a dona da camela afaga o animal e canta. E enquanto cordas e voz soam, a mãe camela começa a acolher o filhote, empurrando-o docemente para suas tetas.
E o filhote antes rejeitado e infeliz, vem e mama, mama, mama desesperadamente feliz. E enquanto ele mama e a música continua, a câmera mostra em primeiro plano que lágrimas desbordam umas após outras dos olhos da mãe camela, dando sinais de que a natureza se reencontrou a si mesma, a rejeição foi superada, o afeto reuniu num todo amoroso os apartados elementos. Nós, humanos, na plateia, olhamos aquilo estarrecidos. Maravilhados. Os mongóis na cena constatam apenas mais um exercício de sua milenar sabedoria. E nós, que perdemos o contato com o micro e o macrocosmo ficamos bestificados com nossa ignorância de coisas tão simples e essenciais. Bem que os antigos falavam da terapêutica musical. Casos de instrumentos que abrandavam a fúria, curavam a surdez, a hipocondria e saravam até a mania de perseguição. Bem que o pensamento místico hindu dizia que a vida se consubstancia no universo com o primeiro som audível - um ré bemol - e que a palavra só surgiria mais tarde.
Bem que os pitagóricos, na Grécia, sustentavam que o universo era uma partitura musical, que o intervalo musical entre a Terra e a Lua era de um tom e que o cosmos era regido pela harmonia das esferas. Os primitivos na Mongólia sabem disto. Os camelos também. Mas nós, os pós-modernos cultivamos a rejeição, a ruptura e o ruído. Haja professor de música para consertar isto!
Camelos também choram - fragmentos...
FRASE DO DIA:
"Se você quer que as coisas sejam diferentes, talvez a resposta é se tornar diferente você mesmo." (Norman Vincent)
BRANCO COM BRANCO
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