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sábado, 12 de fevereiro de 2011

O ECLÉTICO AKUTAGAWA


O conto livre de Akutagawa

                O ficcionista japonês Ryunosuke Akutagawa (1892-1927) é conhecido no Ocidente por um conto apenas: “Rashomon”, de 1915. Ainda assim a pequena fama se deu menos pela importância literária do autor ou o conteúdo da história que pela versão cinematográfica de Akira Kurosawa. O filme, lançado em 1950, resulta na combinação de dois contos de Akutagawa. De “Rashomon”, ele retirou a ambientação no pórtico de Kyoto, conhecido como Rashomon, no final do período Heian (794-1185). A então capital do império se encontra na ruína – e seu antigo pórtico monumental passa a servir como ossário e valhacouto de criminosos e mendigos.

               Como o enredo de “Rashomon” é básico demais para um longa-metragem – o insólito encontro de um mendigo com uma mulher que explora os cadáveres –, Kurosawa usou a trama mais complexa de “No matagal”, publicado em 1922: o assassinato de um samurai é relatado por três testemunhas, uma delas o fantasma da vítima.
                 As duas histórias dão a medida do talento fabuloso (de “fábula”) de Akutagawa. Faltava no Brasil, porém, um volume que trouxesse o conjunto da obra do autor. Kappa e o Levante Imaginário (Estação Liberdade, 352 páginas, R$ 47) preenche o vazio. Trata-se de uma antologia com 11 dos principais relatos breves do escritor, inclusive os que inspiraram Kurosawa, em tradução do japonês de Shintaro Hayashi, autor do prefácio da edição.

            O volume revela um autor eclético, entusiasmado pelas crônicas medievais do Japão, pelos narradores russos, como Gógol e Dostoiévski, pelos relatos intimistas de Marcel Proust e até pela ficção científica de H.G.Wells. Todas essas inclinações e esses gêneros díspares se chocam sem se misturar na narrativa.

            A novela Kappa e o levante imaginário, de 1927, começa como uma ficção científica em torno de um animal mítico, o kappa, uma espécie de anfíbio extraterrestre inteligente. À medida que o narrador discorre sobre os hábitos sociais dos kappas, a aventura se converte em alegoria política. Alguns críticos do tempo dizem que Akutagawa mascarou com ficção científica sua apologia do socialismo para evitar punições da polícia política da monarquia.
              Sua vocação contestadora não se resume ao presente. Ela se estende à Idade Média. O autor recorre às fontes mais antigas da literatura japonesa – como as coletâneas de contos Ujishui Monogatari (1213-1219) e Kokonchomonju (1254) – para reinventá-las. “O nariz”, ao modo de Gógol, conta o drama de um burocrata que usa de todos os recursos para disfarçar o nariz grande – numa paródia à vaidade dos altos funcionários do império. Em “Inferno”, ele questiona os limites da arte com a história de um pintor que incendeia a filha a fim de pintar um quadro perfeito do sofrimento dos pecadores no mundo dos mortos.

             O último texto do livro, “Rodas dentadas”, não é ficção, mas um diário íntimo in extremis. O tema recorrente é o medo de enlouquecer, como sua mãe quando ele era criança. Ele retrata as pessoas da família como seres mais alienígenas que os kappas. 
                    E se martiriza até as derradeiras linhas, em abril de 1927: Já não me restam forças para continuar escrevendo. Viver assim é uma tortura indescritível. Alguém poderia me estrangular em silêncio, enquanto durmo? Três meses depois, Akutagawa se suicidava, ingerindo cianeto de potássio. Tinha 34 anos.

                    A consagração de sua obra se consolidou em 1950, quando o maior prêmio literário do Japão foi batizado com o nome do atormentado e genial contador de história.
 BELEZA ENCARNADA

 

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