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sábado, 15 de setembro de 2012

UM POUCO DE CARLOS GOMES 14




O ESCRAVO


CARTA DE CARLOS GOMES A D. PEDRO II SOBRE LO SCHIAVO

“Senhor,

Por intermédio do Exmo Ministro Lopes Netto recebi mais uma saudação da  parte de Vossa Majestade, que foi para mim da mais subida honra e  prazer.

É, pois, com toda sinceridade que também eu, como verdadeiro amigo, saúdo Vossa Majestade e toda a Augusta Família Imperial.

Há mais de dois anos que vivo procrastinando o dia de escrever a V.M.  com o fim de fazê-lo ciente da luta que ando sustentando em silêncio.  Demorei até hoje na esperança que um golpe de fortuna me viesse livrar  da triste situação em que me acho.

Pelo contrário tenho andado de mal a pior.

A única boa notícia que hoje posso dar a V.M. é que finalmente a minha  nova ópera O Escravo está concluída na parte musical, faltando somente  passar toda a ópera em Partitura de Orquestra, cujo trabalho material  requer ainda 5 ou 6 meses.

Com mais esta ópera cumpro um voto do meu coração de brasileiro patriota. É um Guarani correto.

Era meu desejo fazer a estreia desta ópera no Brasil ou na Europa sem  depender dos editores, mas não tenho meios para conseguir essa desejada  vitória: falo de meios pecuniários.

Sei que V.M. se interessa por mim e há de estimar que eu seja franco:  assim não é somente ao Imperador do Brasil que eu tenho a honra de  escrever; é também a um amigo e protetor. Animado por esse sentimento,  escrevo, enfim, com a franqueza do meu costume e do meu dever.

“Ora incomincian le dolenti note.”

É notório que em 1870, cedi, quase grátis, a propriedade absoluta das  minhas óperas Guarany e Fosca ao editor Lucca de Milão, – onde estava o  meu juízo (se algum dia o tive) quando assinei semelhantes contratos!

O mal, porém, está feito e não há remédio.

Em 1874, desgostoso com o editor Lucca, escrevi para a Casa Ricordi o  Salvador Rosa, que conta já 11 anos de sucesso. O contrato que essa Casa  me ofereceu então pela dita ópera era sofrível, mas de outro lado as  consequências foram para mim fatais. Com a mudança de editor a Casa  Lucca tem se vingado de mim cruelmente, negando a Ópera Fosca aos  teatros da Europa, e sobre tudo ao repertório italiano; de modo que os  meus direitos de autor sobre essa ópera foram nulos durante o tempo que  me competiam e hoje estão terminados.

Qualquer lucro que de ora em diante houver será para o editor, ficando a mim somente o eco das harmonias!

O Guarani, que também conta já 15 anos de sucesso, foi sempre  propriedade absoluta do editor desde 1870 em que se deu pela primeira  vez, e por isso dele nunca recebi direitos de autor na Europa. O  Salvador Rosa na Itália e mesmo fora já está muito conhecido e principia  a render bem pouco ao editor e por conseguinte muito menos ao pobre  autor.

A Maria Tudor é ainda hoje um problema, e não compreendo a razão pela  qual o editor Ricordi tem se mostrado sempre intransigente com as  empresas que se tem oferecido para pô-la em cena.

O autor, neste caso, é sempre a última roda do carro por ser a ópera de propriedade do editor.

Eu sou tão caipora que até mesmo no Brasil esta Ópera tem ficado no esquecimento.

Estas e muitas outras graves contrariedades têm sido a causa dos meus contínuos atrasos.

Tenho lutado muito, muitíssimo, mas hoje vivo desanimado. É necessário por isso que eu confesse tudo a V. Majestade.

Logo depois da Tudor o meu desejo foi escrever outra ópera de assunto  puramente nacional, lisonjeado, como fui, por alguns amigos daí que era  provável que me fosse dada oficialmente a comissão de escrever uma ópera  de assunto nacional e expressamente para o Brasil. Mas faltava-me o  libreto (o libreto!). Gravíssimos desgostos de família deram motivo à  minha viagem ao Brasil em 1880, procurando sanar certas dolorosas  feridas que só se curam no cemitério. Em 1882 e 83 fui também ao Norte  do Império arrastado por um empresário que me prometeu o que não  cumpriu, e de lá voltei arrependido por ter perdido o meu tempo sem nada  ter avantajado em interesses.

Não me faltaram também os falsos amigos nessa ocasião. Mesmo, porém, em  viagem a minha ideia fixa foi sempre o Escravo, do qual os jornais  mexeriqueiros do Brasil já tinham dado notícia com antecedência.

No principio da formação desse libreto as dificuldades foram tais que  desanimei e abandonei-o por alguns meses. Lancei mão logo em outros  libretos: o primeiro Leona (assunto espanhol), o segundo Oldrada  (assunto alemão). Cheguei até a metade dessas duas óperas e reconheci  que era, como é, melhor a primeira ideia.

Voltei enfim decididamente ao assunto nacional; mas o poeta já tinha  perdido a paciência comigo, e eu com ele… Mas era necessário libertar o  Escravo!

Principiei “da capo” sustentando um duplo trabalho. Inventei o drama,  compus a poesia e a música ao mesmo tempo. Um “tour” de foice! Conheço  que não sou Wagner nem Brito quanto aos conhecimentos literários, mas  também não passei todo o meu tempo no estudo da música; tenho lido  muitos autores antigos e modernos; conheço as regras da poesia e com  bastante prática da cena e com a minha força de vontade compus todo o  libreto do Escravo.

Quanto à música d’esta ópera “ai posteri l’ardua sentenza!”

Consta-me que V.M. leu o libreto, podendo assim julgar se um italiano  que não conhece o Brasil e que nada tem lido a respeito poderia imaginar  certas cenas puramente brasileiras e que só um filho do sertão como eu  poderia reproduzir.

Como, porém, poderei continuar com ânimo tranquilo no trabalho, ainda  que material, da Partitura, faltando-me hoje todos os recursos para mim e  meus filhos, e ainda cercado de credores?

Hoje é só a humilhação, daqui a cerca de 3 meses será um naufrágio à vista do porto!

Imagine V. Majestade que a minha casa, edificada no campo com o fruto de  antigas economias, está hipotecada por pouco menos do valor e que devo  ainda mais 46 mil francos ao Banco de Lecco, dinheiro tomado pouco a  pouco para viver durante estes 3 últimos anos em que nada tenho recebido  das minhas óperas tanto na Itália como no Brasil.

Minhas óperas estão depositadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia,  Pernambuco e Pará. Se houvesse um pouco de boa vontade da parte dos meus  amigos do Brasil, os empresários não passariam sem representá-las  anualmente e com esse produto eu teria podido viver sem humilhações, sem  individar-me e sem viver pedindo…

É triste para quem, como eu, vive necessitado saber que pessoas  estranhas se aproveitam dos meus trabalhos rindo-se de mim. E isso tem  me acontecido várias vezes no Brasil.

No Rio Grande do Sul se tem representado o Guarany sem que eu possa  reclamar os meus direitos contra a violência dos empresários italianos  que por lá andam, não tendo eu amigos naquela Província e não sabendo a  qual autoridade dirigir-me. Até a Senhora Coaracy serviu-se da música da  minha ópera para o drama Guarany dado ultimamente na Corte. Outros, sem  minha permissão, cantam em seus benefícios pedaços das minhas óperas e  sem curar-se dos meus direitos de autor. São miudezas, mas na minha  posição até o pouco me serviria.

E como tenho passado até hoje?

Já o disse a V. Majestade: do crédito e da estima que, modéstia de  parte, gozo da Itália, mas o crédito tem seu limite e o Banco de Lecco  já me deu a entender que está cansado de renovar as letras e quer o  importe.

Essas letras vencem-se a 9 de dezembro próximo. O que hei de fazer?

Bati já a todas as portas de onde podia esperar algum socorro: o  Compadre Castellões respondeu-me que para o futuro espera obter uma  récita em meu benefício.

Mas isso é para o futuro!

Meu irmão respondeu-me que não me pode socorrer. O Ricordi está muito  alcançado nos seus negócios e impossibilitado de adiantar-me quantia  alguma.

É uma coincidência singular: em 1870 V. Majestade Imperial abriu as  portas do Scala para o Guarany. Hoje o Escravo, que é o meu segundo  Guarany não poderá viver nem ser libertado se V. M. não lhe estende a  mão benéfica.

Até que pude calei-me para não afligir a V. Majestade; hoje, porém, sou  obrigado a confessar toda a verdade, e conhecendo o coração magnânimo de  V. Majestade e conhecendo quanto me é amigo ouso pedir e suplicar que  me empreste a quantia de 50 mil francos que me são indispensáveis para  me salvar da triste posição em que me acho.

Com mais esta imensa graça V. Majestade salva um pai de família, um amigo, um artista e mais um Escravo!

Beijando a augusta mão de V. Majestade peço desculpa da prolixidade  desta carta e me assino com toda a sinceridade do meu coração.

De V. Majestade Imperial

Amigo muito grato e súbdito fiel

A. Carlos Gomes



Milano 19 de setembro de 1885”



 O ESCRAVO

A ópera mais bonita de todas as compostas por CARLOS GOMES baseia-se,  inicialmente, em uma peça de teatro de Alexandre Dumas Filho,  pouquíssimo conhecida e comentada, chamada Les Danicheff em fatos reais  da vida de Alfredo Taunay, amigo de CARLOS GOMES e no poema épico A  Confederação dos Tamoios, de Domingos José Gonçalves de Magalhães,  inspirado em fatos verídicos da História do Brasil.

No aspecto cênico e teatral, tudo é lógico e de fácil entendimento e a  música a tudo valoriza com admirável efetividade, tornando mais uniforme  a obra. Não há desequilíbrios, nem cênicos e nem musicais, é uma ópera  nobre na sua uniformidade, simplicidade e no seu equilíbrio. 


A abertura – A ALVORADA – é perfeita – trecho musical de raros dotes  descritivos, cheio de matizes orquestrais evocando, em sonoridades  vivas, a madrugada na floresta tropical, entre o murmúrio do arvoredo e o  canto delicioso de nossos pássaros, terminando com um dinamismo  orquestral riquíssimo e verdadeiramente empolgante. São oito páginas  saborosas, formando um poema musical de infinita delicadeza.
MONUMENTO-TÚMULO DE CARLOS GOMES restaurado pela Secretaria de Cultura na gestão do Prefeito Pedro Serafim- 2012

O tom é novo e o sentimento nacional em que a ópera é inspirada  contribui para tal renovação, bem como a maturidade do artista que ao  enfrentar pela segunda vez um enredo pátrio, torna-se consciente dos  próprios meios.

Em uma carta de Gino Marinuzzi endereçada a Itala Gomes em 11 de  fevereiro de 1937, o regente e compositor italiano diz: “Lo Schiavo,  opera veramente nobile.”


CARLOS GOMES vende Lo Schiavo à Casa Ricordi, que fica com 40% dos lucros.

Em 1885, CARLOS GOMES encontra-se triste e frustrado pela não-montagem  de suas óperas novas, por estar compondo apenas canções para canto e  piano, pelo adiamento das negociações com sua nova ópera O ESCRAVO,  pelas gigantescas dificuldades com as despesas de Vila Brasilia e por  saldar suas obrigações com Adelina.

Em carta de 19 de outubro de 1890 a Taunay, confessa:

 
“OH! OS ARTISTAS! ELES MATAM OU DÃO VIDA AO PAPEL QUE RABISCO." (Antonio CARLOS GOMES)

Fonte: Meu livro "OLHOS DE ÁGUIA - ANTONIO CARLOS GOMES - A TRAJETÓRIA DE UM GÊNIO" - a ser publicado.


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