Resumo de "Criação" - Gore
Vidal
Traduzido por Newton Goldman
Ciro Espítama, neto de Zoroastro, aos
setenta e cinco anos de idade, já cego, ouve a conferência de Heródoto de
Halicarnasso, o Pai da História, no Odeon em Atenas sobre as guerras gregas;
revoltado e totalmente contrário à narração feita por Heródoto é incentivado
por seu sobrinho Demócrito, então com dezoito anos, a escrever a sua versão da
história das Guerras Gregas.
Ciro, personagem principal, narra sua
trajetória desde a infância vivida na côrte de Dario, Rei da Pérsia, onde foi
educado ao lado de Xerxes, sucessor de Dario, de acordo com a disciplina
militar da corte persa. Lá vê e vive toda a artimanha do poder, as
conspirações, os bastidores da corte, as jogadas políticas, a falsidade dos
relacionamentos, as alianças, etc, o dia-a-dia de uma corte, onde cada um joga a
seu próprio favor.
Odeon de Atenas
Como neto de Zoroastro sua sina
natural seria o sacerdócio, mas ele queria ser guerreiro; pouco antes da sua
consagração, conhecendo suas aspirações, Dario nomeia-o embaixador do Grande
Rei para explorar e conhecer a Índia. Liderando uma caravana e com uma carta do
Rei da Pérsia, outorgando-lhe poder para advogar em nome do soberano, segue para
explorar o desconhecido para a época.
Em sua estadia na Índia, entre todas
as realizações, Ciro se casa, tem duas filhas e conhece Buda. Em seus diálogos
conhece os princípios do budismo e compara com o zoroastrismo; conta
intimidades sobre Buda, construindo um panorama perfeito para que o leitor
possa reconstruir mentalmente a época e imaginar o cotidiano das pessoas que
viveram no século V antes da era cristã.
Buda
Retorna com o desejo de incentivar o
Grande Rei a "sonhar com vacas", ou seja, a querer expandir seu reino além do
Mediterrâneo, mas os olhos e o coração do rei estavam voltados para outra
direção. Apesar de tudo Ciro retorna à corte que já o havia dado como morto e é
nomeado Amigo do Rei, cargo que dá enorme prestígio e o faz conhecido por todo
o reino.
Quando Xerxes sucedeu Dario e
tornou-se o rei da Pérsia, mandou Ciro novamente em missão persa, só que agora
para Catai região ocidental do império, onde hoje conhecemos como China. Mais
uma vez lá vai o homem que nasceu para ser sacerdote que queria ser guerreiro,
mas tornou-se embaixador dos reis Dario e Xerxes.
Confúcio
Em Catai conhece Confúcio e toda a
doutrina da religião chinesa. Este fato auxilia o leitor a fazer comparações
entre os princípios de cada uma das correntes religiosas, a visão de cada uma
delas sobre de onde viemos e para onde vamos; chegando a citar a afirmação de Pitágoras
que se dizia reencarnação de um deus.
Nesta trajetória histórica, Gore
Vidal nos coloca frente a frente com as contradições entre a justiça e a
liberdade, suas faces em cada país, em cada cidade, em cada comunidade. A
reconstrução histórica pormenorizada nos leva a refletir sobre a eterna busca
do homem sobre uma explicação para a sua existência, o começo dessa longa estrada
chamada vida, até o além de seu final.
Mantendo viva a pergunta com tantas
propostas, mas sem uma única resposta que satisfaça, a não ser a dúvida que
persiste: o que há depois da vida? Deus, big bang, o acaso, a mutação, a
metamorfose, de onde viemos e para onde vamos? Isso fica a cargo do leitor.
“Criação” de Gore Vidal
Resenha de Cláudia
de Sousa Dias
Uma viagem pelos costumes, usos e
tradições das civilizações antigas, pela mão de Ciro Spitama, neto de Zoroastro,
que se encontra na Grécia, em pleno século de Péricles, a ditar as suas
memórias ao sobrinho, Demócrito.
Zoroastro
Criação é uma obra de grandeza sem precedentes,
um projeto ambicioso que envolve um gigantesco trabalho de pesquisa histórica,
isto é, de observação documental e, simultaneamente, de observação in loco -
algo que se depreende pela exatidão e abundância dos detalhes, relacionados com
a geografia, o clima, o relevo, a fauna e a flora dos diversos locais por onde
“passeia” o protagonista. A finalidade do Autor é comparar as diferenças
civilizacionais, do ponto de vista da personalidade coletiva, de povos como os
Gregos, os Persas, os Hindus do tempo de Siddhartha e as gentes do Catai,
influenciadas por Confúcio, que atualmente identificamos com a China.
Está, também, presente a procura de
uma raíz, um antepassado comum, ou um elemento cultural de ligação entre as
referidas civilizações, que facilmente se encontra através da investigação das
religiões primitivas comuns aos povos indo-europeus ou, melhor dizendo, os
descendentes dos arianos, que incluem os Gregos, os Persas e os Povos ao Norte
da planície Gangética.
Mas essa característica cultural
comum acaba por ultrapassar o fator étnico, conforme Ciro Spitama acaba por
constatar, durante a sua estadia no Catai: as motivações primordiais, aquilo
que impele o homem a agir, bem como as questões que mais intrigam os humanos
são as mesmas: o desejo insaciável de poder, de domínio, ligado à necessidade
de hegemonia e sobrevivência, que depende de um indivíduo ou grupo minoritário
se destacar de entre os mais fracos; e a procura da origens do Homem, do Mundo,
do Cosmos.
Numa palavra: a Criação.
Existem, aqui, duas forças opostas,
que estão, normalmente, em conflito. De um lado, estão aqueles que exercem o
poder, os que se destacam dos demais pela força, pela astúcia, pelo seu poder
aquisitivo (territórios, escravos, ouro, bens materiais). Do outro lado, no
mesmo continuum, temos aqueles que exercem outro tipo de poder: aqueles que
detém o carisma, o poder de condicionar o pensamento das massas. Sacerdotes ou
laicos, estes líderes carismáticos não exercem um poder temporal, mas
espiritual. São eles quem lançam e direccionam a construção dos alicerces do eu
coletivo. São eles quem constroem o paradigma ou modelo conceptual do mundo e
do Universo para cada civilização. Homens como Sócrates, Zoroastro, Siddhartha
(Buda) ou Confúcio. Homens que não chefiam estados nem exércitos, mas que
movimentam multidões à escala continental, num período em que não se ouvia
sequer falar em globalização – embora a ideia de hegemonia, face a todo um
Universo terrestre, estivesse sempre presente. Trata-se de homens para quem o
único deus em que acreditam realmente é a Sabedoria. Embora cada qual tenha o
seu próprio conceito de sabedoria.
Sócrates
A ética civilizacional é lançada,
precisamente, por estas personagens que marcam os traços fundamentais de um eu
coletivo.
A comparação das particularidades
específicas do carácter dos Atenienses com o dos Espartanos e destes com os
Persas, Hindus ou Cataios, é uma das vertentes mais aliciantes do romance. Um
aspecto que é largamente enfatizado pelo humor algo sarcástico de Gore Vidal,
projetado na voz de Ciro Spitama. Ciro é uma personagem com uma personalidade
muito vincada, com convicções religiosas fortemente implantadas, mas que, à
medida que vai recolhendo novos elementos cognitivos nas suas viagens, vai
colorindo, reformulando as suas crenças originais, pela introdução de novos
elementos, sem, no entanto, alterar as fundações das suas crenças.
Curiosamente, a passividade associada
ao budismo, inerente à persecução do seu objetivo final – o nirvana, o
desligamento das coisas materiais e do mundo terreno, tal como o conhecemos –
não o atrai, por achar que esta atitude deixa o caminho livre para os
predadores. Agrada-lhe, por outro lado, a moderação e a aversão a toda e
qualquer forma de extremismo de Confúcio.
Outro dos elementos de grande
interesse para a obra é a forma como o poder é exercido pelas mulheres, nas
diferentes civilizações, o acesso à cultura e à instrução e, por último, o grau
de liberdade relativa no que toca ao convívio com o sexo oposto.
Em Atenas, só as heteros ou companheiras,
como Aspásia, é que jantam, sentadas ou reclinadas, na companhia dos restantes
convivas masculinos. São, normalmente, cortesãs de luxo ou, no mínimo, mulheres
consideradas licenciosas. Têm acesso à cultura e à instrução, mas não exercem
qualquer tipo de cargo público ou político.
Na Pérsia, as mulheres estão
sequestradas em haréns e só podem conviver com eunucos e homens idosos,
fisicamente repelentes. O que não as impede de exercer a arte da intriga e da
conspiração, através do controle da chancelaria do Palácio Imperial, cujo
funcionalismo é composto, quase que exclusivamente, por eunucos. É o caso da
Rainha Atossa, esposa de Dário, mãe do herdeiro oficial do trono e,
posteriormente, da rainha Amestris, esposa de Xerxes e também mãe do sucessor da
coroa imperial.
Na Índia, Ciro Spitama tem a
oportunidade de verificar a existência de uma grande liberdade de convívio
entre os sexos, na casta dos Kshatrias, onde as esposas das famílias da nobreza
guerreira podem presidir à mesa, juntamente com convidados não pertencentes à
família. O nível de sociabilidade entre os dois sexos é, neste nicho social, um
núcleo de vanguarda na Antiguidade. Mas o gênero feminino continua afastado de
qualquer cargo administrativo ou político e, até mesmo, de qualquer profissão
qualificada e remunerada.
Kshatrias
No Catai, só as mulheres idosas gozam
de prestígio social e de autonomia.
Ao analisarmos Criação, verificamos
que o Autor teve o cuidado de avaliar e analisar aquilo que são os fundamentos
das principais civilizações atuais, com exceção do continente americano, ao
qual, por motivos óbvios, a personagem Spitama não poderia ter tido acesso.
A obra, datada de 1980, surge logo
depois do golpe de estado na Pérsia, que derrubou o Shah Rheza Pahlevi,
instalando o regime teocrático shiita de Ayatollah Khomeini.
A preocupação com a situação
geopolítica e crescente instabilidade no Médio Oriente – nos anos seguintes,
estalaria o sangrento conflito entre o Irã e o Iraque, contando este último
com os EUA como aliados e apoiantes de Saddam Hussein, o qual tinha, também,
recentemente ascendido à chefia da nação, através de um golpe de estado – está
na origem do aparecimento desta obra com o objetivo de dar a conhecer a raiz e
o fundamento da mentalidade do povo da Pérsia/Irã e o teor das suas relações
com os seus vizinhos.
Uma obra isenta de preconceitos
civilizacionais, atual e do máximo interesse para quem se apaixona pelas
“coisas do mundo”.
Um livro que nos permite mergulhar
nos alicerces e fundações da Humanidade e nas suas motivações mais primárias:
A sede de Conhecimento.
O papel do Homem no Universo.
A criação e o fim do Cosmos.
Enfim, o Alfa e o Ômega…
Resenha de Luciano Alberto Ventura
Nossa civilização ocidental erigiu-se
sob uma herança grega tão intensa que, mesmo depois de vinte e cinco séculos,
sentimos a necessidade de revisitá-la para compormos uma compreensão de nós
mesmos. E, como conseqüência de tal necessidade, muito se tem estudado e
publicado com relação ao pensamento grego antigo. Do pouco que já pudemos ler,
normalmente nos é apresentada uma concepção que, embora crítica, quase sempre
nos aponta o lado favorável do legado grego à posteridade.
Em “Criação” (1981), Gore Vidal, 85,
entre outros temas periféricos, apresenta-nos uma visão da cultura e da
sociedade clássicas diferente daquela a que estamos acostumados. Para tanto,
Vidal constrói uma personagem que nos conduzirá ao longo de toda a obra,
confundindo a vida dela com os eventos políticos gregos, e com o diferencial de
que nosso anfitrião é um persa e crítico feroz de tudo que seja helênico. Seu
nome é Ciro Espítama e, como primeiro fator interessante, Vidal o introduz no
romance como neto de Zoroastro, o profeta persa que vivera no século VII a.C.,
também conhecido por Zaratustra. Tal parentesco, dentro da trama, irá
render-lhe acesso à corte persa, possibilitando o convívio com os quatro
grandes reis: quando criança, conheceu Ciro e suas histórias sobre a expansão
do Império; em sua juventude, serviu e admirou Dário; quando adolescente e
jovem adulto, desfrutou da amizade de Xerxes; já na velhice, representou
Artaxerxes junto aos atenienses, sendo seu embaixador.
Xerxes
O autor utiliza de outro laço de
sangue para construir a narrativa e nos transporta para o século V a.C.: Ciro
Espítama narra a história de sua vida, que resulta no próprio livro, a um
sobrinho que tinha por conta de sua ascendência materna grega, sendo este
ninguém menos que Demócrito de Abdera (460 – 370 a.C.), o filósofo
pré-socrático entusiasta da teoria atômica. Após ouvir por mais de seis horas o
discurso de “(...) um pretenso historiador (...)” chamado Heródoto de
Halicarnasso (485? – 420 a.C) sobre o conflito “(...) a que os gregos costumam
chamar de ‘Guerras Persas’ (...)”, Ciro, já velho e cego e, sobretudo, irritado
pela versão que acabara de ouvir, inicia ao seu sobrinho, que atentamente toma
nota, o relato da faceta persa dos acontecimentos aos quais chamou de “(...) as
guerras gregas (...)”. (p. 15). E essa será a atividade construtora da leitura
que nos é oferecida pelo romance: o sobrinho Demócrito, anotando as memórias de
um persa que, invariavelmente, afronta a versão grega sobre fatos históricos
dos quais participou ou pode presenciar.
Heródoto
Além de podermos apreciar, pela
versão oriental, a história político-militar que opôs gregos a persas, o tema
condutor da obra e, consequentemente, da vida de Ciro Espítama é o desejo do
protagonista de conhecer as hipóteses dadas por diversas culturas sobre a criação.
Divulgador do pensamento monoteísta do Sábio Senhor zoroastriano, Ciro era
“(...) um crente, claro. Mas não (...) um fanático (...)”, e, sendo possuidor de
mente aberta ao que lhe fosse externo, ele percorre uma boa parte do Oriente
antigo a serviço dos reis persas, absorvendo, entre o trabalho de promover o
comércio com os povos locais, a cultura que se lhe fosse apresentada pelas
pessoas que ia conhecendo. (Cf. p. 56). Assim, Vidal, por meio de seu
personagem principal, faz-nos conhecer os princípios básicos do Hinduísmo,
quando da passagem de Ciro pelos reinos independentes que hoje compõem a Índia.
De forma análoga, o autor nos apresenta as filosofias de vida budista e
taoísta, ao colocar o neto de Zoroastro em contato com os povos do Cathai,
atual China. Interessante, também, é ler as linhas que descrevem o encontro, e
o relacionamento que se sucede a ele, entre Ciro e o mestre Confúcio (551 a.C –
479 a.C), além dos fragmentos de ideias de outros pensadores relevantes da
época.
Em determinado momento da narrativa,
abordando o assunto da criação, Demócrito chega a perguntar ao seu tio “(...)
qual das teorias foi a mais curiosa (...)” por ele ouvida. Como resposta, Ciro
afirma-lhe uma que dizia “(...) que nunca houve criação, que nós não existimos,
que tudo isto é um sonho (...)”, sendo o sonhador “(...) aquele que desperta e
lembra (...)”. (p. 212)
O livro mostra-nos, também, como um
olhar externo a uma dada cultura pode desvelar a arte da manutenção de
privilégios tidos como condição natural, por quem nela está imerso, como nos
parágrafos em que o jovem protagonista, na companhia do então príncipe Xerxes,
visita os templos da Babilônia que, à época, era uma satrapia do Império, e
desmascara a prática dos sacerdotes que, ao se fazerem passar por encarnações
de deuses em rituais ditos sagrados, aproveitavam para desvirginar jovens nos
templos em honra a estes, segundo Vidal. Xerxes, acompanhado por Ciro, curioso
por se inteirar da cultura local, mas mantendo o olhar crítico do estrangeiro,
afirma ao administrador do templo de Bel-Marduk, em meio aos olhares perplexos
dos guardiões, que naquela noite iria “(...) realizar essa tarefa por um de
seus sacerdotes (...)”. Quando o administrador lhe nega o direito, dizendo que
ele não era um sacerdote, que somente por um sacerdote o deus poderia se fazer
presente, o príncipe persa afirma que “(...) posso fazer de conta que sou
Bel-Marduk tão bem quanto qualquer sacerdote (...)” e que, ao se considerar que
ele era o herdeiro do reino, o costume facultaria uma exceção. (Cf. p. 137).
Evidenciam-se nesta passagem, a força dos costumes, mas, também, a sua
flexibilidade perante os interesses do poder político ao qual servem.
Aproveitando-se da grande extensão
territorial na qual se constituía o Império Persa no século V a.C., e, por
conseqüência, da diversidade cultural que ele mantinha sobre seu jugo, Gore
Vidal nos apresenta um pouco dos costumes dos vários povos que deviam
obediência aos reis persas. Ao exemplo da personagem principal, que compara
tudo o que lhe seja novo a sua crença interior, Criação nos inspira à prática
deste olhar crítico, sugerindo-nos que tenhamos a nós mesmos por objeto
primeiro desta análise singular. Visitar
as quase oitocentas páginas que compõem a obra, buscando a cada instante
distinguir os fatos históricos dos excessos poéticos presentes na narrativa é
um exercício tão intelectualmente profícuo quanto prazeroso.
EMPAÇOCADOS
Esse livro deve ser o máximo. Tal qual "A Fonte de Israel", de James Michener. Li e amei. Lilis
ResponderExcluirMuito bom!
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