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sexta-feira, 6 de agosto de 2010

ACHANDO SER DEUS







"Rigoletto no Teatro S. Pedro - SP: feiuras da montagem, exageros e exageros, orquestra como nos discos de Caruso, etc...

Quem pensa que o Mincio, um riozinho que corta Mantova, é sombrio e misterioso porque era nele que o Rigoletto queria atirar o corpo do Duque, engana-se inteiramente. O riozinho é lindo, de águas verdes cristalinas e não faz lembrar tragédias e afogamentos.
Como o Mincio, a história do Rigoletto leva muita gente a enganar-se, a “sbagliarsi di grosso”, como dizem os italianos. E a ópera de Verdi então nem se fala.

Para início de conversa, enganam-se os que pensam que ela pode ir ao palco no sistema “embrulha e manda”, como outras podem. Depois, que é feijão com arroz para os intérpretes; depois, que é possível ser muito bom Rigoletto fazendo caras, caretas, bocas, corcundas pontudas e pés tortos. Depois pensam que se pode enganar o público metendo o famoso si natural da “La donna è mobile” de raspão, feito rápida colcheinha.

Depois, que ninguém vai perceber que as cordas da orquestra desaparecem sob um horrível som de tuba (?) e outros metais, que ninguém vai perceber que é feio o salão do palácio do duque às escuras como em um eclipse, que ninguém vai ouvir o péssimo italiano de quase todos os cantores. Por fim, por enquanto, pensam que ninguém vai perceber que é anti-teatral o bufão cantar “O veglia o donna” para Gilda e não para a aia, ou que o comprimário engasgou no “par fata od angiol”...

Esses alguns aspectos gerais do “Rigoletto” de 01/08/2010 no São Pedro. Particularmente, se poderia dizer que o protagonista Lício Bruno, que até hoje, depois de mais de um 30 anos, não sabe se é baixo ou barítono, abusou do “parlato” declamatório, e o texto de Piave ficou parecendo “Le Cid” de Corneille na Comédie, com suas frases grandiloquentíssimas levadas ao extremo. Lício não cantava “cortiggiani vil razza dannata” com as notas escritas por Verdi, não, nem “si, vendetta tremenda vendetta”.

Lício tinha de ir mais longe, muito mais longe, em tamanho exagero que a música toda se deformou. O público gosta, e gostaria mais ainda se o bufão engolisse espadas, cuspisse fogo, desse cambalhotas, ficasse nu. A nosso ver, o Rigoletto de Lício Bruno é vulgar pelo excesso de maneirismos, anti-musical porque muda muito a música, quebrando o ritmo em várias ocasiões para dar uma ajudazinha a Verdi. Nem Manuguerra, nem Teixeira, nem di Bella, nem Nucci, nem Milnes, nem Gottlieb, nem Braga, nem Bruson, nem outros Rigolettos vistos ao vivo por este que escreve foram tão careteiros, tão irrequietos no palco, tão exagerados em um histrionismo de circo e de festa de fim de ano como o de Lício Bruno. Inclusive com uma voz com tendência a ser lisa e sem harmônicos em muitas notas feias que chegaram a nossos ouvidos. No final, aplaudido, apontou ele para o céu, em franca intimidade com Deus ou com algum santo que não sabemos qual. Histriônica como ela só essa demonstração de superioriade: Lício é amigo de Deus ...

O soprano Laura Rizzo é um soprano lírico com mi bemol como centenas que há por aí no mundo inteiro, mas deu conta de sua tarefa, sem entusiasmar nem decepcionar. No final, foi às lágrimas ao ser muito aplaudida, em outra demonstração de histrionismo à la Dercy Gonçalves. Não se chora no palco daquele jeito, agradecendo aplausos. É coisa fácil, e o pequeno burguês ao ver a enxurrada de lágrimas pensa “como é maravilhosa essa cantora. Canta e ainda por cima chora que nem bebê" ...

O tenor Miguel Geraldi teve um ótimo momento na cena que começa em “Parmi veder le lacrime” e vai até quando canta com o coro “scorrendo uniti etc”. Esta a melhor cena da ópera. O coro esteve em excelente nível, muito bem preparado naqueles magníficos crescendos e diminuendos, nos cortes, nos ataques. Pena que no final o coro feminino que canta simulando vento não tenha sido bem ouvido. Ficou muito longe.

Mas, e aí nos lembramos outra vez da bailarina que dança tudo muito bem mas que em dado momento cai de bunda no chão, Geraldi foi cantar o “La donna è mobile” com o si natural final não escrito por Verdi, que se for encarado há que sê-lo como sempre foi, prolongado sustentado. Geraldi soltou uma notinha de passagem, feia e descabida. Caiu no chão ele também...
Não adianta depois descansar, tomar uma vitamina e um comprimido de Simancol e emitir offstage a notinha fatal. A não bastante colcheinha lá ficou, pendurada como um crachá em seu peito.

Grata surpressa foi a Maddalena de Adriana Clis, cantando todo o tempo como legítimo meio soprano. Bom o Sparafucile de Savio Sperandio e digno e satisfatório o Monterone de Eduardo Abumrad, como digno e eficaz tem sido tudo feito por este útil cantor. Pena que não tivesse ele na parede um retrato do Duque para dizer a este “poiché foste invano da me maledetto.”

Como dito, a linda frase musical “par fata od angiol” foi engasgada por quem a cantou. O pagem entrou certo, saiu certo, e deu seu recadinho muito bonitinho. Muito útil também Luciana Costa e Silva. E olhem que com uma só nota um comprimário pode levar uma récita ao ridículo.

A orquestra soou muito feiamente, como dito engolfadas as cordas em metais tonitroantes. Se não inteiramente ainda formada, se não ainda completa, não devia ela enfrentar um “Rigoletto”, na qual todos os naipes são muito exigidos em expressividade. O regente Roberto Duarte não devia ter aceitado essa desastrada estréia operística, como dito no folheto. Mas esse regente, e em geral os regentes brasileiros, aceitam reger orquestras até sem vários instrumentos importantes, chamados à última hora ali na gafieira ou em concursos de universitários. Reger é o que importa.

Grave falta teatral foi a de deixar a sala às escuras no final sob uma chuva de aplausos. Com muitos aplausos, acendem-se os candelabros, os lustres, os canhões e até a lanterna do lanterninha ...

Estas apreciações nada valem perante o entusiasmo do público, que bateu muitas palmas. Mas, por outro lado, público aplaude até minuto de silêncio, como dizia o velho Nélson Rodrigues. Feliz aquele inocente burguês que não se preocupa com desafinações ou cordas engolfadas por tubas ou trombones. Ele vai à ópera com a patroa e volta prá casa feliz assobiando “La donna è mobile”. Quem está certo, o alegre burguês do Itaim Bibi ou o crítico estudioso e reclamão que já viu não se sabe quantos Rigolettos e estuda a sua partitura de cabo a rabo? Alguém já viu estátua de crítico? ...

Finalizando, mais uma vez a pronúncia geral do italiano cantado foi um desastre nesse “Rigoletto”. Abundaram finais em “e” transformados em “i”, consoantes duplas omitidas, “ss” sibilantes, “zz” corretos. A conferir nas gravações. Vejamos se lá há algum “voi congiurasti”, “Signori” no lugar de “signore”, “velia” no lugar de ”veglia”, “intânto” em vez de “intánto”, “comin” em vez de “come in“, e por aí. Em certas ocasiões, parecia que se cantava na Sicilia, onde “u curtu” combinava ações com “u tratturi” ...

PS. “U curtu” em siciliano quer dizer “o baixinho”, e “u tratturi” quer dizer “o trator”, apelidos de chefes da Mafia."

"CULPA RUBET VULTUS MEUS
MARCUS GÓES – “RIGOLETTO” – TEATRO SÃO PEDRO/SP – 01/08/2010"
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COMENTÁRIO DO DIA:

E o sr. Marcus Góes, em toda sua sapiência musical e teatral e Verdiana já chegou no estágio de achar que é DEUS !
Se houveram erros e falhas, ao menos levaram cultura ao público brasileiro, o que já é uma grande vitória.
Se o italiano foi certo ou errado... não estamos na Itália... mal falamos nossa língua !
Se houve pobreza de cenário, estamos tão aquém da civilizaqção européia, que um cenário "real e fiel ao original" passa a ser dispensável, mesmo porque não vivemos "euro", vivemos "real".
Se a orquestra deixou a desejar, é porque ainda é uma orquestra jovem e graças a Deus, ela estava ali, prometendo um grande futuro, porque os "experts" e perfeitos profissionais mais velhos, certamente morrerão. Então é muito bom que as coisas se renovem.

Parabéns pelo trabalho hercúleo, pessoal do Teatro São Pedro.
Vocês são demais !
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