MILLÔR
DISCURSO DE DEUS A EVA
Millôr Fernandes
Minha cara,
eu te criei porque o mundo estava meio vazio, e o homem, solitário. O
Paraíso era perfeito e, portanto, sem futuro. As árvores, ninguém para
criticá-las; os jardins, ninguém para modificá-los; as cobras, ninguém
para ouvi-las. Foi por isso que eu te fiz.
Ele nem percebeu e custará os séculos para percebê-lo. É lento, o
homenzinho. Mas, hás de compreender, foi a primeira criatura humana que
fiz em toda a minha vida. Tive que usar argila, material precário,
embora maleável. Já em ti usei a cartilagem de Adão, matéria mais
difícil de trabalhar, mais teimosa, porém mais nobre.
Caprichei
em tuas cordas vocais, poderás falar mais, e mais suavemente. Teu corpo
é mais bem acabado, mais liso, mais redondo, mais móvel, e nele
coloquei alguns detalhes que, penso, vão fazer muito sucesso pelos
tempos a fora.
Olha Adão enquanto dorme; é teu. Ele pensará que
és dele. Tu o dominarás sempre. Como escrava, como mãe, como mulher,
concubina, vizinha, mulher do vizinho. Os deuses, meus descendentes; os
profetas, meus public-relations, os legisladores, meus advogados;
proibir-te-ão como luxúria, como adultério, como crime, e até como
atentado ao pudor !
Mas eles próprios não resistirão e chorarão
como santos depois de pecarem contigo; como hereges, depois de, nos teus
braços, negarem as próprias crenças; como traidores, depois de
modificarem a Lei para servir-te. E tu, só de meneios, viverás.
Nasces sábia, na certeza de todos os teus recursos, enquanto o Homem,
rude e primário, terá que se esforçar a vida inteira para adquirir um
pouco de bens que depositará humildemente no teu leito.
Vai !
Quando perguntei a ele se queria uma Mulher, e lhe expliquei que era um
prazer acima de todos os outros, ele perguntou se era um banho de rio
ainda melhor. Eu ri. O homem é um simplório. Ou um cínico. Ainda não o
entendi bem, eu que o fiz, imagina agora os seus semelhantes.
Olha, ele acorda. Vai. Dá-me um beijo e vai. Hmmmm, eu não pensava que
fosse tão bom. Hmmmm, ótimo ! Vai, vai ! Não é a mim que você deve tentar,
menina ! Vai, ele acorda. Vem vindo para cá. Olha a cara de espanto que
faz. Sorri ! Ah, eu vou me divertir muito nestes próximos séculos !
Texto extraído do livro "Esta é a verdadeira história do Paraíso"
Millôr Fernandes, carioca, nascido em 1924 e falecido em 2012.
Millôr por Millôr é como tudo que Millôr Fernandes escreveu: notável !
CASINHA DE BONECA
Millôr Fernandes foi inconfundível na arte de escrever com muito humor e humor inteligente qualquer realidade. Seja ela nos níveis: religioso, politico e do cotidiano.
ResponderExcluirTransformava tudo em humor delicioso!
Millor inigualável!
ResponderExcluirTá pra nascer outro Millor Fernandes!
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