Aurora e Tramonto - CARLOS GOMES
by Rodolpho Caniato
Aurora e Tramonto é uma das muitas de canções escritas por CARLOS GOMES durante seus quase vinte anos de vida na Itália. As palavras escritas pelo poeta M. M. Marcello na primeira parte do poema Aurora e Tramonto descrevem a beleza do despontar do sol (aurora), trazendo com ele as promessas do porvir de uma vida que principia.
Na segunda parte (tramonto, ocaso) ele faz uma analogia entre o cair da tarde (ocaso) e o fim da vida humana (morte). Esse poema foi musicado por CARLOS GOMES usando uma escala ascendente para o nascer do sol e outra descendente para o ocaso, produzindo um efeito bastante original, que lembra, em parte, a sua Alvorada, prelúdio do quarto ato de Lo Schiavo.
A vida de CARLOS GOMES, especialmente durante o período em que viveu na Itália, parece ter algo que lembra essa metáfora de glória e triunfo inicial, seguido de um período final de grandes dissabores, tristezas, declínio e morte.
Conta-se que numa tarde, enquanto caminhava pela grande praça da catedral, o Duomo de Milão, o maestro, nosso “Tonico de Campinas”, ouviu alguém apregoar uma tradução de O Guarani, do escritor brasileiro José de Alencar. A obra desse autor, que logo se tornaria ministro da Justiça do imperador D. Pedro II, havia sido publicada pouco tempo antes, mas já se encontrava traduzida para outros idiomas. O Guarani, escrito por José de Alencar em sua fase indianista, seria um grande argumento e um tema de grande brasilidade, digno de ser musicado para uma grande ópera. CARLOS GOMES apressou-se em levar a idéia a Antônio Scalvini, libretista já seu amigo, que aceitou a encomenda de preparar o indispensável libreto em italiano.
Para o texto da ópera, em italiano, foram feitas algumas modificações na história, especialmente em relação à origem de um dos protagonistas, o “bandido” Gonzalez que no romance original era um padre.
A estréia de Il Guarany no maior templo da ópera mundial, no Scala de Milão, aconteceu em 19 de março de 1870. Logo de início foram doze récitas, acrescidas de outras quinze na temporada seguinte. O caráter original e inovador da música de CARLOS GOMES se evidenciava nos novos instrumentos de percussão, no tema exótico de sua história e na íntima relação entre música, texto e o desenrolar da trama. Logo a música do “Tonico de Campinas” ecoaria por muitas outras importantes cidades da Europa e das Américas. À estréia de Milão seguiram-se apresentações em Buenos Aires, Barcelona, Montevidéu, Havana, São Petersburgo, Malta, Nice, Lisboa, México, São Francisco, Nova York, Estocolmo e Nápoles.
Era a maior consagração que um autor poderia almejar. Esse triunfo se reveste de especial significado pelo fato de CARLOS GOMES ser um mestiço vindo das Américas, até então desconsideradas pela Europa, especialmente no campo das artes e da cultura. Durante toda uma década (1870-80), CARLOS GOMES foi o autor mais encenado no teatro Scalla, superado apenas pelo grande e já muito famoso Giuseppe Verdi.
Com a fama, veio também a fortuna. CARLOS GOMES construiu uma enorme e rica mansão, a “Villa Brasília” em Lecco, ao norte de Milão, nas proximidades do lago de Como. Depois de uma promissora alvorada, sua vida parecia agora iluminada pelo sol do meio-dia. Na vida pessoal, entretanto, começavam as tribulações de um casamento infeliz, culminando em uma separação judicial que, além de conflituosa, acabou se tornando de domínio público. Outro motivo que lhe causou enorme sofrimento foi a morte prematura de três de seus filhos.
O sol começava a declinar, caminhando para um ocaso cheio de dissabores, tribulações e sofrimento físico.
O êxito de O Guarani, uma história envolvendo índios do Novo Mundo, despertou em CARLOS GOMES e em seus editores o desejo de repetir o sucesso empregando algum tema parecido, que também envolvesse índios. Nessa época, Alfredo D’Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, seu amigo da corte de D. Pedro II, havia lançado uma novela, O Escravo, cujo protagonista era um negro escravo, que se tornava o herói da história. Não se sabe ao certo de quem nem de onde surgiu a idéia, mas alguém sugeriu que o personagem do negro fosse substituído por um índio. O fato é que no libreto escrito por Rodolpho Paravicini a história recuou no tempo e o negro foi substituído por um índio, desta vez não mais guarani, mas tamoio. Isso deu motivo para possíveis querelas e aborrecimentos, a começar com o próprio autor do argumento, o Visconde de Taunay. Como se não bastasse, CARLOS GOMES resolveu ainda inserir no libreto um poema sobre “liberdade” (cantado pelos índios) de autoria de Carlo Gighanti, diretor do colégio militar onde estudava um de seus filhos. Isso provocou um sério conflito com o autor do libreto original, Rodolpho \Paravicini, que não podia admitir esse tipo de intromissão em sua obra, ainda mais usando palavras de outro autor, que pareciam estar relacionadas ao nascente orgulho nacional do período de unificação da Itália. Paravicini não só entrou com uma ação judicial como conseguiu a proibição de Lo Schiavo em solo italiano. A Itália parecia fechar as portas ao antes glorioso e festejado autor brasileiro. Foi um grande revés na carreira de CARLOS GOMES, trazendo conseqüências desastrosas, que se somaram às tribulações de caráter pessoal na vida de Carlos Gomes.
De volta ao Brasil, CARLOS GOMES dedicou a ópera Lo Schiavo à princesa Isabel. A estréia aconteceu no Brasil, já que na Itália não foi possível. CARLOS GOMES pretendia que a montagem fosse feita com patrocínio oficial. O custo da montagem — quarenta contos de réis —, no entanto, era muito alto para as finanças do Império, que já enfrentava uma crise que o levaria ao fim. Desta forma, os recursos para a montagem de O Escravo foram obtidos através de uma subscrição feita entre os nobres, por iniciativa da princesa Isabel.
Finalmente, a estréia de O Escravo aconteceu em 2 de setembro de 1889, no Imperial Teatro D. Pedro II, no Rio de Janeiro, com a presença do imperador. Apesar do sucesso e da aclamação do público, parte da imprensa fez duríssimas críticas à obra, acusando CARLOS GOMES de oportunismo e até mesmo de racismo, embora reconhecendo a qualidade e a beleza de sua música. No prelúdio do quarto ato dessa ópera pode-se ouvir sua célebre Alvorada, uma das mais famosas e belas peças orquestrais de CARLOS GOMES, onde ele retrata, com grande colorido orquestral, a beleza, o mistério e os ruídos da selva brasileira, terminando em uma apoteose sonora ascendente, que culmina com o nascer do sol, o raiar de um novo dia. Lamentavelmente, sua Alvorada chegou com o crepúsculo do Império e da Família Real, que sempre o apoiara e a quem ele devia, em grande parte, sua carreira. Poucos meses depois da estréia de O Escravo a República foi proclamada e a Família Real seguiu para o exílio. Embora todos reconhecessem os méritos de CARLOS GOMES, a partida da Família Real deixou-o “órfão”, pois o clima era hostil a tudo que se ligava à recém-finda monarquia.
A “orfandade” política de nosso CARLOS GOMES levou-o de volta à Itália, na tentativa de dar um novo impulso à sua carreira. Seu nome ainda era bastante conhecido por lá, apesar dos reveses. Sua última ópera, O Condor, foi composta em três meses, sob encomenda do teatro Scala e com libreto de Mario Canti. Porém, seu argumento não empolgou o público. A estréia foi no Scala de Milão em fevereiro de 1891, mas sem alcançar o sucesso que seu autor já experimentara. Os tempos eram outros... Despontava agora o verismo, especialmente com os jovens Puccini, Mascagni e Leoncavallo, alunos de um amigo e admirador de CARLOS GOMES, Ammilcare Ponchielli, o autor de La Gioconda.
Com a saúde debilitada, a Itália já não lhe parecia mais propícia, tanto do ponto de vista artístico quanto pessoal. De volta ao Brasil, sua glória passada e seu currículo sugeriam a indicação de seu nome para o cargo mais almejado no Brasil no campo da música: o de diretor do Conservatório Musical do Rio de Janeiro. Porém seu nome foi preterido, devido à sua estreita ligação com a antiga corte imperial, em favor de Leopoldo Miguez.
Já muito mal de saúde e abatido, CARLOS GOMES mudou-se para Belém do Pará, ocupando o cargo de diretor do Conservatório Musical de Belém, cidade onde veio a falecer em 16 de dezembro de 1896. Depois de ter atingido as alturas da glória e da fama, sua vida chegava ao ocaso. Sua luminosa alvorada chegava ao fim, dando lugar a um nostálgico e prematuro tramonto.
Seu corpo foi embalsamado e transportado para Santos no vapor Itaipu, numa viagem de 21 dias. O percurso do porto de Santos a Campinas, que ele fizera ainda jovem, em lombo de burro, agora era percorrido por seu féretro, de volta à sua terra, na recém-construída estrada de ferro. Depois do ocaso de sua vida, Carlos Gomes, finalmente, entrava para a história, sendo reconhecido como “gênio musical das Américas” e motivo de orgulho para sua cidade, Campinas, e para seu país, o Brasil.
Seu repouso definitivo se deu em Campinas, no túmulo-monumento cuja pedra fundamental foi assistida por Santos Dumont. Esse monumento foi encimado pela figura austera do maestro-regente, esculpida por um dos maiores artistas brasileiros da época, Rodolpho Barnardelli.
Morto CARLOS GOMES, caberia especialmente à sua cidade, Campinas, e a seu país, o Brasil, não só cultuar a sua memória como principalmente cultivar e difundir sua grande e imortal obra musical.
O ano de 1970 marcou o centenário da estréia de Il Guarany. Campinas, terra de CARLOS GOMES, não poderia ficar indiferente a essa celebração. Com o patrocínio da Prefeitura Municipal, um grupo de amadores tomou a iniciativa de fazer uma montagem da ópera que, pela ocasião, se tornaria histórica. Na semana em que se completava o centenário, foram encenadas quatro récitas de O Guarani, inaugurando, com apressada reforma, o Teatro Municipal Castro Mendes. A direção musical da temporada ficou a cargo do maestro Oreste Sinatra, do Teatro Municipal de São Paulo, à frente da Orquestra Sinfônica de Campinas. A Prefeitura de São Paulo colaborou com esse evento cedendo parte de seu Coral Lírico e alguns solistas.
Os papéis principais foram desempenhados por solistas de Campinas ou aqui radicados, tendo como no papel-título o tenor César D´Ottaviano. A cenografia e os adereços foram feitos por um artista plástico de Campinas, Geraldo Yürgensen. A direção de cena coube a Silney Siqueira e a gravação magnética, ao vivo, ficou a cargo de Henrique de Oliveira.
Em 2002 Rodolpho Caniato, que assina estas páginas e que desempenhou na ocasião o papel de “Don Antonio de Mariz” (baixo) promoveu e custeou uma pequena edição do programa daquelas récitas e da gravação digital (em dois CDs). Esses poucos exemplares foram doados aos protagonistas ainda vivos daquele evento e a algumas instituições, como o Museu CARLOS GOMES (CCLA) e o Conservatório CARLOS GOMES. Na ocasião da assinatura pública da lei do FICC pelo Prefeito Municipal de Campinas, no teatro do Centro de Convivência, um exemplar completo daquela pequena edição foi publicamente entregue por este signatário à autoridade presente, manifestando a esperança de que aquele momento marcasse um avivamento da memória desse grande compositor brasileiro e uma maior divulgação de sua obra.
Aplausos ao grande Maestro!
ResponderExcluir