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domingo, 10 de janeiro de 2010

DENISE NA REVISTA "METRÓPOLE" - reportagem da Sammya Araújo


ONDE ESTOU ? PARA ONDE VOU ?

Bússola: distraídos e afetados pela falta de percepção espacial, não são poucos os que ‘perdem’ o carro no estacionamento do shopping, que invariavelmente erram caminhos e até trocam malas na esteira de bagagem

Norte, Sul, Leste e Oeste. Quatro pontos cardeais baseados na posição do Sol que guiam os sentidos humanos nos rumos do planeta. Bem, não necessariamente. Para muitos, têm pouca serventia, ainda que com uma bússola em mãos. Seres com notória incapacidade de localização, que se reconhecerão numa das situações a seguir. Saindo de uma sala em que estiveram pela primeira vez, vão dar com uma parede e rodam como piões buscando o corredor que os levou ali. Estacionamentos de shopping e hipermercado são um pesadelo. O carro deveria poder gritar para chamá-los e tirá-los da agonia. Cair numa rodovia, então, é tormentoso. De onde surgiu esse pedágio? Que cidade é essa?

A empresária Sumaia Radwan se assume uma dessas criaturas perdidas. “Apesar de ter nascido em São Paulo e sido criada no Rio de Janeiro, que são grandes capitais, meu senso de desorientação aflora mesmo é em Campinas, com o emaranhado de estradas que a envolve. Dificilmente chego atrasada aos compromissos, pois já calculo que vou me perder. Até no Cambuí ainda me perco”, diz. No rol de suas famosas e rotineiras peripécias está a de rodar por uma rodovia e como que ao acordar de um blecaute se ver em outra, obviamente em sentido totalmente oposto ao que pretendia ir.

Uma pedagoga e professora universitária de Campinas que não quer divulgar o nome, constrangida com suas desventuras geográficas, conta uma delas. “Fui para Santo André dar uma palestra. Conhecendo-me e sabendo como seria complicado estar lá no horário, cheguei duas horas antes, explorei as imediações do local e fui dar um tempo num shopping bem próximo. Na hora em que saí, 20 minutos antes de me apresentar, cadê meu carro? Em que andar deixei? Foi desesperador. Resultado: 30 minutos atrasada.”

Além da falta de percepção espacial, outros acumulam a moléstia da distração e do esquecimento. No que estavam indo para determinado destino, passam direto e, quando se dão conta, vão longe. Chaves teimam em desaparecer, devoradas pelo monstro que se alimenta de uma tortura mental e os deixa entregues a chaveiros mercenários no meio da madrugada. Sair de casa envolve uma série complicada de técnicas mnemônicas para lembrar de fechar portas e janelas, pegar celular, pasta, bolsa.

“Numa única saída posso ter que voltar até três, quatro vezes da garagem para pegar algo que esqueci”, afirma a contadora Sandra Cristina Gomes. Um aparador foi posicionado estrategicamente à porta do apartamento para que ela deixasse ali tudo de que precisaria no dia seguinte. Adiantou pouco.

“Se tenho que carregar a bateria do telefone, é certo que vou deixá-lo no quarto. Cansei de trancar as chaves dentro do porta-malas ao tirar compras de supermercado. Já até joguei a chave fora com uma sacola, pus no lixo do prédio e o caminhão passou em seguida. Ia viajar e precisei chamar o chaveiro, que me cobrou R$ 120 para abrir o carro, porque, é claro, nem imaginava onde estava a chave reserva. Eu sofro”, constata.

Além das cruzes da perda de tempo e do prejuízo material que costumam carregar, os avoados, mais do que gostariam de recordar, pagam micos. Sandra não é mais capaz de parar o carro na torre de estacionamento do Shopping Iguatemi desde que desceu na contramão, apavorou-se e fez os demais motoristas darem marcha à ré, porque mal conseguia se mexer de tanto tremer. “Ainda ouço os xingamentos. Sou muito distraída.”

A professora de inglês Denise de Oliveira Maricato confunde-se nos corredores dos shoppings e anda quilômetros para encontrar uma loja. No mesmo passeio, pode ser que não ache o rastro do carro no estacionamento, carregar sacolas de outras pessoas e largar as suas para trás e até de levar à mesa do self-service o prato alheio.

Mas o que ela considera – até agora – seu recorde, foi o dia em que estreou um salão de cabeleireiros de amigos da filha, e depois de passar a tarde se embelezando, não pode ir embora. O controle de seu Santana, na época, não abria a porta do veículo de jeito nenhum. Denise voltou ao salão, que já estava fechando, para pedir ajuda, e o périplo começou.

“Pelejaram de todo jeito. Chamaram até um amigo, dono de um restaurante vizinho, que também tinha um Santana. O cara pegou a chave dele, tentou abrir e nada. No final, eram uns seis homens, cada um tentando uma coisa e tendo uma ideia. Lá pelas tantas, um dos cabeleireiros foi até a traseira do carro e disse: ‘Denise, você não disse que morou 10 anos em Natal e que trouxe esse carro de lá?’. Confirmei, e ele:’Mas este carro é do Rio de Janeiro’”.

Mas não havia acabado. O solícito rapaz questionou quantas portas tinha o carro de Denise. Ao saber que eram duas, observou que o alvo das tentativas de quase arrombamento tinha quatro. “Aquele carro simplesmente não era o meu! O fandango havia começado às 18h30 e já eram 20h. Eu alugara toda aquela gente para pagar um mico”, recorda a professora, agora também escritora, com uma biografia sobre o tio trisavô, nada menos que o maestro Carlos Gomes. Questões genéticas podem estar envolvidas, uma vez que o compositor era outro reconhecido distraído.

“E digo isso em meu livro. Carlos Gomes costumava ficar absolutamente absorto em seu mundo interior. Andava pelas ruas de Milão sem olhar para ninguém, mergulhado nos sons. Tinha até um caderninho no bolso e um lápis, que usava para marcar as inspirações que surgiam nesses passeios. O maestro adorava os sons da natureza”, conta Denise. Mas, tal como seu antepassado de talento magistral, ela faz uma ressalva: “Sou distraída com as coisas que não são importantes. As que me interessam recebem total atenção”, garante.


Foco demais pode atrapalhar

A contadora Sandra Gomes, que perde tudo no caminho entre o apartamento e a garagem, credita tais transtornos de ordem prática à rotina cheia e à tendência de planejar obsessivamente o dia a dia. “Fico pensando tanto no que tenho que fazer no trabalho, nas tarefas domésticas, nas contas, na agenda das crianças, enfim, que parece que não me vejo deixando algum objeto aqui ou ali. Minha mente se separa do corpo. É como se nunca tivesse estado com aquilo na mão, uma loucura”, desabafa.

Mesma impressão tem a professora de inglês Denise Maricato. “Incidentes como o de pegar sacolas de outras pessoas e o prato alheio no self-service eu atribuo à falta de atenção. Concentro-me mais naquilo que estou falando ou pensando na hora e me desfoco do resto”, reconhece.

O neurologista Fernando Cendes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos coordenadores do programa Cooperação Interinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cérebro (Cinapce), de fato atribui a esse foco “fechado” parte dos distúrbios de atenção que colocam muita gente em situações embaraçosas ou atrapalham as atividades mais simples.

“Essas distrações são características de dois tipos de pessoas. As que não ligam para nada, estão como que ‘fora do mundo’, e aquelas que, ao contrário, estão extremamente focadas em algo específico. No último caso, os demais assuntos ficam em segundo plano”, afirma. O médico ressalta que, é claro, pode haver a presença de problema neurológico.

“Os quadros mais comuns são o de depressão, quando o indivíduo perde o interesse por tudo, mas que é algo transitório, ou de origem orgânica, como uma lesão cerebral. Alcoólatras crônicos, em que o álcool e a falta de vitaminas podem afetar áreas do cérebro que influenciam a memória, por exemplo. Mas, nesses casos, o esquecimento e a distração raramente aparecem isolados. Normalmente há outros sintomas”, explica. Como o Mal de Alzheimer, Cendes menciona, que começa com lapsos importantes de memória. “A pessoa pode começar a se perder, mas também esquece panela no fogo, desaprende a fazer contas.”

Mas, de tudo, o que mais leva os esquecidos a procurarem ajuda médica, segundo Cendes, é, além da depressão, queixas relacionadas ao estresse e à falta de capacidade de concentração. “Aquele ‘estresse’ básico pode ajudar a pessoa a dar mais foco ao que interessa, mas, em excesso, faz travar”, alerta.

‘Perdi carro, celular, bolsa e materiais de alunas’

Outra que se abstrai tanto que vive em permanente caça ao carro perdido é a pedagoga anônima. No pátio da universidade em que trabalha, já entrou em um veículo que não era o seu. No aeroporto de Viracopos, chegando de viagem, outro clássico: levou embora a mala alheia. “Só vi quando cheguei em casa. Já era mais de 1h e esperei amanhecer para retornar ao aeroporto. Foi um transtorno.”

Ela também coleciona confusões de itinerários e agenda. Assessora de duas secretarias de educação de cidades da região, há alguns dias deveria ir para uma e quando percebeu estava na outra. “Uma hora de atraso e dois pedágios extras”, contabiliza.

Em outra ocasião, dando carona a uma aluna que mora no mesmo bairro, conseguiu entrar na contramão e ser encurralada por ladrões. “Eles me largaram no aeroporto de Americana. Era 23h e eu andando na SP-304 por uma rua em que entrei errado. Perdi carro, celular, bolsa e materiais de alunas”, lamenta. Mas a cabeça nos ares faz, em compensação, ter pé no chão com finanças. “Nunca faço crediário, só compro no cartão de crédito, que é pago no débito automático. Não confio em mim.”

Cérebros semelhantes, demandas diferentes

A psicologia “popular” tem como fato que mulheres não têm condições de ler mapas e homens encontram qualquer recôndito. Mas o neurologista Fernando Cendes afirma que não há provas científicas de qualquer diferença entre os cérebros masculinos e femininos nesse aspecto. “Há pesquisas que apontam uma frequência estatística nesse sentido, mas não é necessariamente devido ao sexo”, avalia.

Cendes diz que tais habilidades de localização espacial derivam de prioridades e necessidades e podem ser aprendidas, independentemente do gênero. Basta querer. Ou, como é mais fácil acontecer, ter que se virar. “Se a pessoa precisar, se for questão de vida ou morte, ela vai conseguir se localizar. Não é por conta de uma incapacidade e nem algo estritamente fisiológico, é mais sociocultural e comportamental. A capacidade de cada um está lá, à espera de ser desenvolvida”, afirma.

No Inferno de Dante

O jornalista e escritor Eustáquio Gomes, cronista da Metrópole, é distraído e desorientado assumido. Suas perdições e seus esquecimentos homéricos são conhecidos dos leitores, tanto quanto os sonhos que ele registra detalhadamente. Essa dedicação a um riquíssimo mundo onírico é uma das hipóteses levantadas pelo próprio Gomes para suas trapalhadas quando acordado está.

Como a que se meteu no dia do aniversário de 70 anos do artista plástico e amigo Bernardo Caro, em 2001. Caro, morto em 2007, morava em um condomínio no bairro Notre Dame, em Campinas, que tem acesso pela Rodovia D. Pedro I e depois pela Avenida Mackenzie. Em vez de pegar a segunda saída, a certa, Gomes rumava pela primeira e voltava à estrada. “Fiquei andando em círculos, me vi no Inferno de Dante”, brinca.

Decidiu começar tudo de novo. Mas, tonto de tanto girar, foi no sentido de Valinhos. Logo estava no mato. Era noite de Lua Azul, a segunda lua cheia no mesmo mês, um fenômeno raro. E só o satélite embrulhado em celofane fazia companhia ao escritor, tornando mais tétrica e surreal a aventura. “Peguei uma estradinha e parei numa guarita, mas não havia ninguém. Na volta para o carro, meti os pés num brejo e fiquei com lama pelos joelhos. Naquela hora, a festa já era. Fiquei ouvindo sapos”, lembra.

Um carro passou, Gomes o seguiu até que um portão se fechou às suas costas. Era um condomínio. “Pensei: ‘Tô preso’. Peguei o celular para chamar alguém, mas não tinha sinal. Vi um sujeito se esgueirando pela cerca, era o porteiro, assustado porque tinha havido um assalto recente. Me orientou e finalmente consegui voltar para a estrada”, conta. Era quase meia-noite, o aniversário tinha ido para as cucuias. “Expliquei ao Bernardo, mas ele não acreditou muito. Depois fiz uma crônica contando e recebi um retorno enorme de leitores dizendo que são iguaizinhos”, comenta.

Gomes também é dos que têm os estacionamentos como portais para dimensões paralelas. Vizinho ao mercado, costumava ir a pé às compras, mas um dia foi de carro. E lá o largou. Jantou, dormiu, acordou e deu com o vazio na garagem de casa. “Pensei que tinha sido roubado, mas o portão não estava arrombado... Será que tinham chegado a esse nível de sofisticação?”, questionou. O escritor e a mulher foram à caça do “fujão”. Nem assim lembrou do que ocorrera.“Eu só achei o carro porque o vi no pátio do mercado.”

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